ÁGUAS DESCONHECIDAS A nova economia da variabilidade e escassez de água Richard Damania, Sébastien Desbureaux, Marie Hyland, Asif Islam, Scott Moore, Aude-Sophie Rodella, Jason Russ, Esha Zaveri Resumo Executivo Quando rarearam as chuvas e as florestas se transformaram em savanas áridas, os primeiros seres humanos deixaram a África, caminhando à deriva em busca de água. Fazendas, assentamentos e, por fim, cidades formaram- -se ao longo dos rios e deram origem a grandes civilizações. Atualmente, como antes, a atividade econômica continua vinculada à disponibilidade de água. Este relacionamento, porém, deverá passar por pressões sem pre- cedentes, no momento em que o século XXI testemunha a colisão de duas forças poderosas — o crescimento populacional expressivo e a mudança do clima. Com o crescimento populacional, a escassez de água proliferará em novas áreas em todo mundo. E com a mudança do clima, as chuvas passarão a ser mais instáveis, com períodos mais longos e mais profundos de secas e dilúvios. Chuvas irregulares fazem-se sentir fortemente em comunidades e economias. As inundações são uma metáfora tão poderosa da experiência humana que quase todas as civilizações — da antiguidade clássica, às religiões abraâmicas até a Mesopotâmia antiga — apresentam relatos de um dilúvio épico que transformou o mundo. Embora ainda se discuta a veracidade desses mitos à luz de fatos históricos, eventos climáticos extremos continuam a remodelar sociedades, deixando uma marca permanente na vida dos que passam por isso. Nas últimas duas décadas, eventos de chuvas extremas afetaram, em média, mais de 300 milhões de pessoas, por ano. Com a mudança climática, a expectativa é de um aumento na frequência de episódios extremos de chuva. A adaptação à variação das tendências pluviais, embora por si só difícil, é um processo gradual e previsível. Saber como lidar com os choques imprevisíveis de chuvas com frequência incerta e magnitude desconhecida apresenta um desafio adicional provocado pela mudança climática. Se por um lado as inundações são eventos climáticos espetaculares que provocam danos incríveis, por outro, as secas são uma desgraça em câmara lenta com impactos mais profundos e mais duradouros do que se acreditava anteriormente. Embora rios transbordantes e tempestades representem grandes ameaças econômicas, este livro demonstra que os impactos da escassez de água e da seca podem ser ainda maiores, provocando danos duradouros que são pouco entendidos e inadequadamente documentados. As secas podem ter impactos na saúde, prejudicar a produtividade das empresas, acelerar a destruição das florestas e comprometer os sistemas agrícolas. 1 Este livro apresenta novas evidências com o intuito de melhorar o entendimento do impacto que os choques de precipitação, juntamente com a escassez de água, exercem nas fazendas, empresas e famílias. Nas fazendas, os maiores consumidores de água do mundo, os impactos progridem a partir da queda da produção até mudanças na paisagem. Nas cidades, extremos hídricos, especialmente quando combinados com infraestrutura pouco confiável, podem paralisar a produção, vendas e receitas das empresas. No centro de tudo isso se encontram as famílias, que sentem os efeitos dessa incerteza em sua renda, empregos, e saúde e bem-estar no longo prazo. Fazendas áridas, produção minguante e florestas em contração Em boa parte do mundo, mesmos desvios moderados nos níveis regulares de precipitação podem provocar mudanças no rendimento das colheitas. As regiões mais secas são as mais sensíveis à variabilidade pluvial, embora extremos de precipitação também possam provocar perdas agrícolas em regiões de chuva e produtividade mais abundantes. Essa variabilidade é responsável por uma perda líquida considerável na produção de alimentos todo ano – que seria suficiente para alimentar 81 milhões de pessoas por ano, equivalente a uma população do mesmo porte que a da Alemanha. Muitas das regiões afetadas coincidem com áreas que já enfrentam deficits alimentares e são classificadas como frágeis, aumentando a urgência em se encontrar e implementar soluções. Os choques de precipitação causam efeitos cascata que vão desde a diminuição do rendimento das colheitas até a redução da cobertura de florestas. Ao enfrentar a produtividade agrícola decrescente em razão dos choques de precipitação, os agricultores muitas vezes buscam recuperar essas perdas aumentando a área de cultivo, à custa dos habitats naturais. A variabilidade pluvial pode corresponder a até 60% do aumento da taxa de expansão média da fronteira agrícola, sendo responsável, portanto, por muito da pressão exercida nas áreas de florestas. A mudança climática pode acelerar esse padrão, levando a um ciclo vicioso em que os choques de precipitação induzem ao desmatamento, aumentando assim as emissões de dióxido de carbono que, por sua vez, exacerbam ainda mais os extremos de chuva. Os sistemas de irrigação normalmente protegem a agricultura dos efeitos adversos da variabilidade pluvial, mas também ampliam paradoxalmente os impactos desses choques. A disponibilidade de irrigação proporciona não somente uma proteção isolante contra a variabilidade pluvial, mas também estimula o rendimento da produção em anos regulares. No entanto, em muitas regiões áridas do mundo, esses sistemas não conseguem proteger os agricultores dos impactos da seca. A irrigação livre cria a ilusão de abundância, que sustenta o cultivo de plantações que requerem uso intensivo de água, como o arroz e a cana de açúcar que, em última instância, não são adequadas para essas regiões. A lei inexorável da oferta e da procura determina então que, quando o 2 ÁGUAS DESCONHECIDAS abastecimento de água é muito barato, ela passa a ser consumida de forma irresponsável. Consequentemente, a produtividade da colheita sofre de forma desproporcional na época das secas porque suas necessidades hídricas extraordinárias não podem ser atendidas. Este livro demonstra que este paradoxo da oferta é um problema generalizado em áreas onde a água é escassa e a demanda incontrolável. Quando as chuvas passam a ser o destino Embora o choque das chuvas seja passageiro, suas consequências podem selar o destino dos que o enfrentam quando ainda são crianças. Privações, como a falta de alimentos, durante os primeiros anos de vida impedem o desenvolvimento físico e mental das crianças, com consequências sérias e muitas vezes irreversíveis. Nas regiões rurais da África, mulheres nascidas em épocas de seca acentuada carregam essa marca por toda sua vida; crescem e se desenvolvem com menor estatura, recebem menos escolaridade e, em última instância, adquirem menos riqueza. Além disso, podem ter menos autonomia para tomar decisões financeiras domiciliares e ser mais propensas a aceitar a violência doméstica. As secas tendem a ser consideradas eventos de curto prazo que terminam quando começa a chover novamente, mas seus efeitos podem acompanhar as pessoas a vida inteira, provocando impactos que passam despercebidos. Talvez o mais problemático seja o fato de que o legado dos choques de precipitação pode repercutir através das gerações, prejudicando não só as mulheres que passam por isso, mas também os seus filhos. Os choques de precipitação enfrentados por uma mulher na infância podem ter um impacto significativo na saúde de seus filhos, que serão mais propensos a sofrer de desnutrição. Essas constatações somam-se à urgência de abordar os efeitos da adversidade na infância por meios de medidas como seguro contra a seca e redes de proteção social. A vulnerabilidade da cidade Nas cidades, os impactos econômicos do choque da seca normalmente são maiores do que os do choque da chuva. Embora a infraestrutura urbana normalmente consiga proteger os residentes dos efeitos de choques de precipitação moderados, as cidades continuam à mercê dos grandes choques de precipitação. Além disso, embora a devastação imediata causada pelas enchentes atraia mais atenção, as secas nas cidades podem ter impactos mais graves e duradouros nas empresas e em seus funcionários. Na América Latina, a perda de renda provocada por um choque de seca é maior do que o de um choque de chuva. As consequências das secas são pouco compreendidas, provocando a incidência de diarreia, impactos na saúde de crianças pequenas e um aumento na frequência de apagões. O desempenho das empresas nas cidades também é afetado pela disponibilidade de água. Se, por um lado, a dependência de transportes e Resumo Executivo 3 infraestrutura por parte do setor privado é de conhecimento geral, por outro, pouco se sabe sobre a importância da água para as empresas. As constatações deste livro mostram que quando os serviços urbanos de abastecimento de água são interrompidos, seja pelo clima, infraestrutura deficiente ou ambos, as empresas enfrentarão quedas significativas nas vendas e emprego. As mais vulneráveis são as empresas menores e informais, que são a principal fonte de emprego nos países em desenvolvimento. Os impactos dos serviços de abastecimento de água e saneamento nas cidades, portanto, vão muito além dos efeitos amplamente documentados na saúde humana. Evitar o caminho árido Continuar como se nada estivesse acontecendo levará os países a trilhar o “caminho árido” de secas que selam destinos. Evitar essa desgraça em câmara lenta demandará mudanças fundamentais na gestão hídrica e exigirá o uso de diferentes instrumentos de políticas para abordar as diversas implicações econômicas da água, em todo o seu ciclo de uso (Figura ES.1). Nas fontes, rios e aquíferos, a água é um bem público sujeito a gestão deficiente e problemas de exploração excessiva de um recurso de propriedade comum. Quando a água flui pelos canos para acabar com a sede das cidades ou pelos canais de irrigação para cultivar alimentos, passa a ser simultaneamente um bem privado e de interesse geral — algo a que as pessoas têm direito como uma necessidade da vida e da saúde. Nas cidades, este desafio duplo é agravado porque os custos de construção de múltiplos sistemas de abastecimento são proibitivos e impraticáveis. A água, portanto, deve ser abastecida aos consumidores através de uma rede única de propriedade de um único dono — um monopólio — que precisa ser regulamentada para garantir o acesso à água adequado e a um custo que as pessoas tenham condições de pagar. Por fim, a água passa pelo sistema de esgoto e volta a entrar no ecossistema onde, se não por tratada, pode representar grandes riscos para a saúde e meio ambiente. Essas diversas características, por vezes conflitantes, fazem com que os formuladores de política, economistas, ambientalistas e especialista em recursos hídricos nem sempre concordem quanto à melhor maneira de regulamentar, distribuir e utilizar a água. Negligenciar essas conexões, no entanto, pode ter como resultado decisões políticas que são, na melhor das hipóteses, menos eficazes do que poderiam ser e, na pior, claramente prejudiciais. Na fonte, medidas do lado da oferta não necessárias para que se possa abastecer os usuários com água. Estas podem abranger investimentos em infraestrutura, como reservatórios, sistemas de irrigação e tecnologia de reutilização de águas residuais. Soluções de “capital natural”, que se baseiam em características da natureza como a capacidade de retenção de água das florestas, também oferecem meios relativamente baratos de abordar algumas das questões referentes à escassez de água. Investimentos em tecnologias que melhorem a eficiência no uso e consumo de água podem também ser úteis e oferecem a perspectiva tentadora de criar água 4 ÁGUAS DESCONHECIDAS “nova”, sem privar os usuários existentes. A adoção de soluções como essas tem sido lenta em razão da incongruência de incentivos. Grande parte dos benefícios das melhorias de eficiência é pública, enquanto que os custos de adoção da tecnologia são privados. Isso significa que serão necessários incentivos mais acentuados para absorver a tecnologia que podem incluir mudança no regime de subsídios, melhor acesso ao crédito ou investimentos públicos em infraestrutura. O desafio da gestão hídrica nas cidades é fundamentalmente diferente, exigindo um melhor desempenho das empresas de abastecimento de água mediante formas adequadas de regulamentação e incentivos para alcançar um equilíbrio entre serviços de qualidade para o consumidor e uma taxa de retorno que assegure a recuperação dos custos e mais investimentos no setor. FIGURA ES.1 O Ciclo da Política Hídrica Fon Fonte de água Protege a fonte do abastecimento hídrico Fazendas Gerem a demanda para lidar Infraestrutura hídrica com o crescente estresse da água de distribuição transforma a água de um bem público em um bem privado Empresas Regulamentam as empresas de utilidade pública para se ter acesso confiável a água salubre e saneamento Famílias Redes de proteção social para proteger os mais vulneráveis porque a água é um bem de interesse geral Políticas ambientais para reduzir a poluição e degradação dos recursos hídricos Resumo Executivo 5 Abordagens do lado da oferta, embora necessárias, raramente são suficientes para construir resiliência adequada a padrões irregulares de precipitação. Sem sinais econômicos adequados, a elevação do abastecimento de água também aumenta demanda. O resultado é um círculo vicioso em que o abastecimento de água é aumentado apenas para ver a água ser consumida de forma ineficiente; que no fim leva a região a níveis maiores de estresse de água. Este paradoxo da oferta demonstra invariavelmente a necessidade de combinar investimentos que elevem o abastecimento de água com políticas de gestão e alocação hídrica eficientes. Essas políticas incluem o estabelecimento de preços, pontos de intercâmbio e negociação de água e cotas para o uso geral que visem garantir que uma quantidade suficiente seja deixada para o meio ambiente. Esquemas de intercâmbio e negociação de água são uma abordagem promissora que permite a venda de água a usuários de mais alto valor. O resultado é vantajoso para ambas as partes porque a transferência só acontece se tanto o comprador como o vendedor se beneficiarem com a transação. A eficiência no uso aumenta e a conservação melhora. A arquitetura institucional necessária para o bom funcionamento de um sistema de intercâmbio e negociação de água é complexa. Porém, mesmo que os obstáculos sejam significativos, trata-se de um mecanismo para o qual é chegado o momento de consideração séria, quando não de implementação imediata em todos os contextos. Aprimoramentos na gestão do setor de abastecimento de água, embora necessários para criar eficiência e resiliência, podem não proteger os mais pobres contra a situação de chuvas irregulares nem garantir que os recursos hídricos sejam usados de forma sustentável. Programas de proteção social e esquemas de seguro são necessários para proteger as populações mais vulneráveis das tormentas das secas e inundações. No meio rural, essas redes de proteção social podem assumir a forma de esquemas de seguro de colheita, enquanto que nas cidades, é necessária regulamentação cuidadosa das empresas de utilidade pública para garantir o acesso a água limpa a um custo acessível. Salvaguardas adequados, como cotas e padrões de qualidade da água, são necessários para garantir o uso mais sustentável da água, proteger as fontes e evitar a utilização excessiva e o abuso desses bens públicos. Este conjunto de políticas é necessário para proteger os mais vulneráveis de choques hídricos e garantir que as chuvas não se transformem em destino, perpetuando a pobreza. O futuro será de sede e incerto. Mais de 60% da humanidade já vive em áreas com estresse de água, em que o abastecimento hídrico não consegue atender à demanda de forma sustentável. Se os recursos hídricos não forem geridos com maior prudência — da fonte, à torneira e de volta à fonte — as crises observadas hoje se transformarão nas catástrofes de amanhã. 6 ÁGUAS DESCONHECIDAS FIGURA ES.2 Alguns resultados em perspectiva ÁGUAS DESCONHECIDAS Com o crescimento populacional, a demanda de água vem acelerando e, com a mudança do clima, as chuvas estão ficando mais irregulares Os choques de precipitação afetam a 25% da humanidade todo ano Os impactos têm repercussão nas fazendas, empresas e famílias FAZENDAS EMPRESAS FAMíLIAS Os choques da seca Para empresas O choque da seca na reduzem a rentabilidade e cidades, o custo dos infância pode se e provocam perdas que choques de seca transformar em poderiam alimentar é quatro vezes maior destino, com efeitos 81 milhões de pessoas, do que o de choques duradouros na saúde equivalente à população da de chuva. Sem água e riqueza, aprisionando Alemanha. Choques de seca suficiente, as futuras gerações na levam os agricultores economias contraem pobreza e desnutrição a expandir a fronteira com impactos na agrícola para dentro das saúde, renda do florestas, piorando trabalho e vendas das a mudança climática empresas e ameaçando o abastecimento de água Choques de seca são uma desgraça em câmara lenta Resumo Executivo 7