ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA QUENTIN WODON, PAULA TAVARES, CHATA MALE E ANDRÉ LOUREIRO ABRIL DE 2019 ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA QUENTIN WODON, PAULA TAVARES, CHATA MALE E ANDRÉ LOUREIRO INFORMAÇÕES SOBRE A SÉRIE O casamento infantil é definido como uma união formal ou informal antes dos 18 anos de idade, de acordo com convenções e padrões internacionais1. Essa prática afeta principalmente as meninas e é amplamente considerada uma violação dos direitos humanos e uma forma de violência. Embora o casamento na infância e adolescência e a gravidez precoce, como uma das possíveis consequências do casamento infantil, sejam bem mais prevalentes em países de renda baixa e média baixa, também são observados nas economias desenvolvidas. Os dois acontecimentos representam vários riscos às trajetórias de vida das meninas, incluindo maiores riscos à saúde, maior fertilidade, escolaridade mais baixa, salários mais baixos na idade adulta, menor capacidade de tomar decisões em casa e maior risco de violência praticada pelo parceiro íntimo. Isso gera um alto custo pessoal para as meninas, seus filhos e suas famílias, além de altos custos agregados para os países. Erradicar o casamento infantil é uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Os investimentos para acabar com essa prática, no entanto, são limitados; mundialmente a redução da incidência de casamentos infantis tem sido muito lenta e, na trajetória atual, a meta dos ODS não será alcançada. O objetivo principal desta série de notas2 sobre a erradicação do casamento infantil é documentar o papel que as leis, políticas e intervenções ou programas específicos podem desempenhar para acabar com essa prática. Isso é feito por meio de análises de vários países e estudos de caso de países específicos. A série também discute os fatores que incentivam essa prática, sua tendência ao longo do tempo e os compromissos assumidos pelos governos dos países ou outras partes interessadas para eliminar o casamento na infância e adolescência. Finalmente, a série tem como objetivo oferecer orientações sobre como medir o casamento infantil, elaborar diagnósticos e planejar estratégias e intervenções para erradicar a prática. Ao discutir maneiras de acabar com o casamento infantil e a gravidez precoce, várias notas desta série reconhecem a existência de uma relação muito próxima entre a escolaridade das meninas e o casamento infantil e gravidez precoce. A eliminação do casamento na infância e adolescência e da gravidez precoce teria um resultado positivo sobre a escolaridade das meninas. Por outro lado, o aumento da escolaridade das meninas ajudaria a reduzir a incidência de casamentos na infância e adolescência e maternidade precoce. Por isso, a permanência das meninas na escola é uma das melhores estratégias para acabar com o casamento infantil e a gravidez precoce. Da mesma forma, acabar com o casamento infantil e a gravidez precoce é essencial para as meninas permanecerem na escola e concluírem o Ensino Médio. Além disso, muitas meninas não chegam ao Ensino Médio ou, em alguns países, nunca frequentaram a escola. No caso de meninas que não estão estudando, programas que lhes possibilite voltar à escola, bem como intervenções de empoderamento econômico, são essenciais para ajudar as meninas a adiarem o casamento e a maternidade e garantirem seu futuro. 1 A definição segue a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), que o Brasil assinou e ratificou em 1990. Casamento infantil é o termo mais utilizado e de maior consenso entre profissionais e pesquisadores em nível internacional para definir uniões formais ou informais antes dos 18 anos de idade. Nesta nota, o termo “casamento na infância e adolescência” é usado, alternativamente, para tais casamentos no Brasil, dada a distinção estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, adotado pouco tempo depois do CDC, entre as faixas etárias da infância (menores de 12 anos) e adolescência (12 a 18 anos). 2 Esta nota faz parte de uma série de notas do Banco Mundial sobre políticas para a erradicação do casamento infantil. 2 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | ABRIL 2019 MENSAGENS PRINCIPAIS • A adoção de leis que estabelecem a idade mínima para o casamento aos 18 anos é uma das iniciativas que os países podem adotar para acabar com a prática. Mas a legislação Esta nota foi elaborada para informar o diálogo sobre também deve garantir que o casamento em uma idade políticas para a eliminação do casamento na infância e mais jovem não seja permitido por exceções previstas em adolescência no Brasil e aumentar a conscientização lei. Isso inclui casos em que as meninas podem se casar sobre o assunto no país. A análise faz parte de um abaixo da idade legal com o consentimento dos pais ou programa de trabalho do Banco Mundial para catalisar autorização judicial, ou sob outras circunstâncias. No Brasil, a idade legal para o casamento é 18 anos, mas a a atenção e os investimentos visando a aumentar a lei permite que as meninas se casem aos 16 anos com escolaridade das meninas, acabar com o casamento na consentimento dos pais ou autorização judicial3. infância e adolescência e prevenir a gravidez precoce ao redor do mundo. No caso do Brasil, mais do que • Além da adoção de leis adequadas, garantir que as meninas investimentos, é preciso iniciativas e ações específicas permaneçam na escola é uma das melhores maneiras de visando esses objetivos (World Bank, 2017). A nota prevenir o casamento na infância e adolescência. Isso também se baseia em dados dos censos de 2000 e 2010 e da reduziria a incidência de casos de gravidez precoce, já que PNAD de 2015 para documentar as tendências dessas os dados indicam que em aproximadamente a metade dos questões no Brasil. Embasada por dados do programa casos, a gravidez antes dos 18 anos ocorre em decorrência do Mulheres, Empresas e o Direito do Banco Mundial, esta casamento precoce. Nos outros casos, estratégias específicas nota também examina a legislação vigente relativa para prevenir a gravidez na adolescência também ajudariam ao casamento infantil. Com base em evidências a garantir a permanência das meninas na escola. Além disso, internacionais, a nota discute ainda políticas e programas outros fatores podem também contribuir para que as meninas para melhorar os resultados para meninas adolescentes. permaneçam na escola, incluindo a proximidade das escolas, garantir que as meninas aprendam enquanto frequentam a As principais conclusões são: escola, e reduzir o risco de violência e assédio sexual na escola • Internacionalmente, o limite etário usado na definição de e no caminho para a escola. “criança” e, portanto, do casamento infantil, é 18 anos • Quanto aos programas que visam adiar o casamento e de idade. Esse é o limiar usado em várias convenções, a maternidade, intervenções que aliviam as restrições tratados e acordos internacionais1. econômicas ao ensino das meninas tendem a ser as • A redução dos casamentos na infância e adolescência no mais efetivas. Também contribuem iniciativas voltadas Brasil tem avançado de maneira muito limitada. Em 2015, a desenvolver habilidades cognitivas, socioemocionais a prevalência de casamentos na infância e adolescência, e técnicas, transformar normas sociais, bem como mensurada com base nos dados do Censo e do PNAD, ampliar o conhecimento sobre perspectivas de trabalho e oportunidades econômicas para as adolescentes, inclusive para meninas abaixo de 18 anos, era de 19,7 por cento, em para as que abandonaram a escola e que, provavelmente, comparação a 21,7 por cento em 2000. Estas estimativas não conseguirão retornar às aulas. Ensinar habilidades podem ser um pouco inferiores às obtidas a partir de outros da vida cotidiana e transmitir conhecimentos sobre tipos de dados2, mas mostram claramente que na trajetória saúde reprodutiva para as adolescentes também é uma atual, o Brasil não conseguirá atingir a meta dos ODS de medida promissora, independentemente de frequentarem erradicar os casamentos prematuros até 2030. a escola, o que pode ser feito em espaços seguros e • A incidência de casamentos na infância e adolescência adequados para tais atividades. é mais alta em algumas áreas do País do que outras, e • O casamento na infância e adolescência, a gravidez entre alguns grupos em relação a outros. Por exemplo, precoce e o baixo nível de escolaridade das meninas o casamento de meninas é mais alto nas regiões norte e estão enraizados em normas sociais que perpetuam nordeste, nas zonas rurais, e entre os pobres. a desigualdade de gênero. Intervenções baseadas na comunidade, com a participação de homens e líderes • Apesar de todos os estados terem aumentado o nível de comunitários, além das mulheres, também podem ser úteis escolaridade das meninas, somente cerca da metade dos no enfrentamento deste desafio. Reduzir o casamento estados registrou redução nas suas taxas de casamentos, precoce de meninas é uma condição necessária para e, mesmo nestes, a redução na incidência não foi aumentar a igualdade de gênero e possibilitar a meninas expressiva. oportunidades iguais de alcançar seu pleno potencial. 1 A definição consta da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) das 3 Até março de 2019, o Código Civil brasileiro permitia o casamento de Nações Unidas, que estabelece o limiar no âmbito internacional. No Brasil, crianças e adolescentes com menos de 16 anos “para evitar imposição ou o Estatuto da Criança e do Adolescente difere da CDC em sua definição de cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez”. Em 13 de março de “criança” e estabelece duas categorias de menores de 18 anos de idade: crianças 2019, foi promulgada a Lei 13.811, que confere nova redação ao Art. 1.520 do (abaixo de 12 anos) e adolescentes (de 12 a 18 anos). Código Civil, para suprimir as exceções legais permissivas ao casamento infantil. 2 Média ponderada das taxas de casamento (formal e informal) de meninas de Com a nova lei, o Art. 1.520 passa a determinar que “não será permitido, em 17 e 18 anos de idade. Estas estimativas podem ser um pouco mais baixas do que qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, [...]”. A nova lei, as obtidas a partir de outros tipos de dados que possuem perguntas específicas porém, não revoga a exceção que permite o casamento entre 16 e 18 anos de para registrar relacionamentos conjugais informais. idade com o consentimento dos pais. ABRIL 2019 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | 3 INTRODUÇÃO TENDÊNCIAS DE ESCOLARIDADE Apesar dos enormes avanços no aumento do nível de DAS MENINAS E escolaridade das meninas, o Brasil ainda apresenta altas taxas de casamento na infância e adolescência DO CASAMENTO (convivência em união formal ou informal antes dos 18 anos, segundo a definição) e gravidez precoce (ter o NA INFÂNCIA E primeiro filho antes dos 18 anos, segundo a definição). ADOLESCÊNCIA No ritmo atual, o país não atingirá a meta 5.3 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de eliminar os casamentos prematuros até 2030. Em nível nacional, o avanço na redução Esta nota foi elaborada para informar o diálogo sobre dos casamentos na infância e adolescência políticas para acabar com o casamento na infância tem sido muito limitado. Em 2015, a e adolescência no Brasil. A análise faz parte de um prevalência de casamentos na infância e programa de trabalho mais amplo do Banco Mundial para catalisar a atenção e os investimentos visando aumentar adolescência era de 19,7 por cento, em a escolaridade das meninas, acabar com o casamento comparação a 21,7 por cento em 2000. infantil e prevenir a gravidez precoce ao redor do mundo. Embora no Brasil o desempenho das meninas seja melhor Neste ritmo, apesar dos avanços mais melhor que o dos meninos na educação, o casamento expressivos em termos de escolaridade de na infância e adolescência ainda leva muitas meninas a meninas, o Brasil não conseguirá atingir a abandonar a escola prematuramente. Globalmente, o casamento infantil tem grandes impactos econômicos meta dos Objetivos de Desenvolvimento negativos (Wodon et al., 2017a); o custo de não educar Sustentável (ODS 5) de erradicar os as meninas também é enorme (Wodon et al., 2018). Os dois fenômenos contribuem para os altos níveis de casamentos prematuros até 2030. desigualdade de renda entre os gêneros (Wodon e de la Brière, 2018). Isso também ocorre no Brasil. Esta seção apresenta uma breve análise das tendências Para incentivar os esforços para acabar com o casamento de escolaridade e casamento infantil nos níveis nacional na infância e adolescência no Brasil, esta nota documenta e estadual, com base nos dados dos censos de 2000 e as tendências dessa prática ao longo do tempo, bem 2010, bem como da Pesquisa Nacional por Amostra como o nível de escolaridade das meninas. Em seguida, de Domicílios de 2015. Mais detalhes da análise estão com base em dados do programa Mulheres, Empresas e o disponíveis em Male e Wodon (2018). Direito (World Bank, 2018), a nota discute a legislação No Brasil, o Ensino Fundamental é gratuito e obrigatório vigente sobre o casamento infantil em comparação à de para crianças e adolescentes de 4 a 14 anos. Três outros países latino-americanos. Finalmente, com base para medir o indicadores são usados neste relatório1 ​​ em um levantamento das evidências internacionais, a nota também discute políticas e programas para melhorar os 1 Embora estas medidas não sejam usuais no Brasil, permitem uma análise detalhada da evolução da escolaridade no Brasil que é relevante para discussão resultados das adolescentes. de casamento precoce. 4 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | ABRIL 2019 nível de escolaridade: a parcela de meninas de 15 a 18 de conclusão das meninas ainda na escola, mas nenhum anos que concluíram o Ensino Fundamental 1, a parcela avanço adicional foi observado na PNAD. de meninas de 18 a 22 anos que concluíram o Ensino Fundamental 2 e a parcela de meninas de 20 a 24 anos Em relação à erradicação de casamentos na infância e que concluíram o Ensino Médio. As faixas etárias são adolescência, o progresso foi bem menor. Em 2015, a assim definidas para permitir que as meninas tenham prevalência de casamentos na infância e adolescência mais alguns anos além da idade normal para concluir era de 19,7 por cento, sugerindo que aproximadamente cada etapa escolar (considerando-se as possibilidades 340 mil meninas se casam, por ano, antes de completar de ingresso tardio e repetência). No Ensino Médio 18 anos. A taxa de prevalência registrada em 2000 era são apresentadas duas estimativas - um valor mínimo, ligeiramente mais alta, de 21,9 por cento. Embora os correspondente à parcela medida, e um valor máximo, dados dos censos de 2000 e 2010 e da PNAD de 2015 que pressupõe que todas as meninas que ainda estão na devam ser precisos quanto às tendências de escolaridade, escola naquele ciclo, e que ainda não o concluíram, de pode ser que subestimem a incidência do casamento na fato o concluirão. infância e adolescência, conforme observado na Caixa 1, considerando-se as definições utilizadas. As estimativas A Tabela 1 e a Figura 1 indicam que houve progresso na dos autores em relação à prevalência de casamentos escolaridade das meninas ao longo do tempo. A taxa na infância e adolescência utilizando dados da Pesquisa de conclusão do Ensino Fundamental 1 das meninas no Nacional Sobre Demografia e Saúde de 1996 e da Brasil aumentou 18 pontos percentuais entre os censos Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e de 2000 e 2010, com um ganho adicional de meio da Mulher de 2006 são mais altas, de 23,4 por cento e ponto na PNAD de 2015. No Ensino Fundamental 2, 28,1 por cento, respectivamente. Ainda assim, em razão os ganhos foram bem expressivos, com um avanço maior da possibilidade de que ambos os censos e a PNAD entre o censo de 2010 e a PNAD de 2015. Em relação subestimem a prevalência de casamentos na infância e à taxa de conclusão do Ensino Médio, os ganhos também adolescência, os dados podem ser usados para mensurar foram grandes entre os dois censos - de 12 a 17 pontos o progresso ao longo do tempo tanto em nível nacional e percentuais, dependendo da suposição em relação às taxas por estados ou esferas inferiores mais desagregadas. Tabela 1: Resultados de Conclusão Escolar de Meninas e Prevalência do Casamento na Infância e Adolescência no Brasil (%) Taxas de Conclusão de Ensino Censo de 2000 Censo de 2010 PNAD de 2015 Conclusão do Ensino Fundamental 1 79,7 98.0 98.5 Conclusão do Ensino Fundamental 2 66,6 77,4 91,4 Conclusão do Ensino Médio - mínimo 32,8 49,2 58,0 Conclusão do Ensino Médio - máximo 41,8 53,5 64,7 Prevalência de casamentos na infância e adolescência 21,9 21,8 19,7 Fonte: Male e Wodon (2018). Notas: A prevalência de casamentos na infância e adolescência tem por base o número de meninas de 17 anos que estão ou já estiveram casadas (ver Caixa 1 para mais explicações). A taxa mínima de conclusão do Ensino Médio tem como base a taxa de conclusão real na faixa etária. A taxa máxima de conclusão pressupõe que todas as meninas que ainda estão no Ensino Médio concluirão o ciclo. Figura 1: Mudanças nas Taxas de Conclusão Escolar de Meninas e Prevalência do Casamento na Infância e Adolescência no Brasil (%) 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Conclusão do Conclusão do Conclusão do Conclusão do Prevalência de Ensino Ensino Ensino Médio - Ensino Médio - casamentos na Fundamental 1 Fundamental 2 mínimo máximo infância e adolescência 2000 2010 2015 Fonte: Baseado nas estimativas da Tabela 1 ABRIL 2019 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | 5 CAIXA 1: DADOS DO CENSO E DA PNAD E SUAS LIMITAÇÕES NA MENSURAÇÃO DO CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA O casamento infantil é definido internacionalmente como uma união formal ou informal antes dos 18 anos de idade, englobando a infância e adolescência. A prevalência do casamento infantil costuma ser medida por meio de Pesquisas de Demografia e Saúde (PDS) ou, na ausência de uma PDS, por Pesquisas por Agrupamento de Indicadores Múltiplos (MICS, Multiple Indicators Cluster Surveys). Estas pesquisas, quando usadas, contêm informação sobre a idade das meninas ao contraírem sua primeira união, seja ela formal ou informal. Essa informação é utilizada para medir a prevalência do casamento infantil internacionalmente. Infelizmente, não há nenhuma pesquisa recente dessa natureza sobre o Brasil. As PDS mais recentes sobre o Brasil foram ​​ realizadas em 1996 e 2006, e o Brasil não participou até o momento do programa MICS. Nesta nota, as estimativas de casamento na infância e adolescência são baseadas em dados dos censos de 2000 e 2010 e da PNAD de 2015. Ao usarmos os dados do censo, contamos com amostras de micro dados disponíveis no IPUMS International. A pergunta 6.40 do conjunto de dados referente ao Brasil é “Qual é o seu estado civil?”. As respostas possíveis são Casado(a), Separado(a) ou legalmente separado(a), Divorciado(a), Viúvo(a) ou Solteiro(a). As estimativas de casamento na infância e adolescência são obtidas com base no número de meninas de 17 e 18 anos que afirmam estarem casadas ou já terem sido casadas (considera-se que as meninas já tenham sido casadas se responderem Separada ou legalmente separada, Divorciada ou Viúva). Estima-se a taxa de meninas que se casaram antes dos 18 anos pelo cálculo do ponto médio entre as estimativas para as meninas de 17 e 18 anos. As medidas baseadas na PNAD de 2015 têm por base perguntas ligeiramente diferentes, que incluem uniões estáveis (não formais), mas também não têm por base, em termos específicos, a idade da primeira união, como se tem quando são utilizados os dados de PDS. As medidas de casamento na infância e adolescência obtidas a partir dos censos podem ser baixas em comparação às taxas de casamento infantil medidas por meio de PDS ou MICS, uma uma vez que as respostas à pergunta do censo tendem a refletir os casamentos formais, e não os informais. Ao mesmo tempo, para analisar as tendências ao longo do tempo, a comparação de dados dos censos de 2000 e 2010 presume-se consistente (mesmo que o casamento infantil tenha sido subestimado em ambos os censos); a vantagem dos dados censitários é que a análise pode ser realizada em níveis de desagregação geográfica mais baixos. As estimativas com base na PNAD de 2015 incluem uniões estáveis, mas devem ser consideradas apenas tentativas, pois não são baseadas em perguntas-padrão do PDS. A prevalência de casamentos na infância e adolescência As Figuras 1 a 3 ilustram as mudanças nas taxas de continua sendo expressiva, em especial em algumas partes conclusão por nível de escolaridade e da prevalência do do país (Taylor et al., 2015). Como em outros países, os casamento na infância e adolescência em nível estadual. casamentos prematuros ocorrem mais frequentemente Nas três figuras, os dados do censo de 2000 aparecem aos 16 ou 17 anos de idade, e não em idades muito baixas no eixo horizontal, e os dados da PNAD de 2015, no (veja Male e Wodon, 2018, para mais detalhes e a Caixa eixo vertical. No caso do nível de escolaridade, o fato 2 para os fatores conducentes ao casamento na infância de todos os estados estarem acima da diagonal indica e adolescência). As uniões com meninas menores de 18 que houve progresso. A distância vertical a partir da anos no Brasil são, geralmente, de natureza informal e diagonal representa a medida desse progresso em pontos consensual - pelo menos inicialmente. Algumas meninas percentuais absolutos. Os estados com níveis mais baixos optam pelo casamento devido à segurança que acreditam de escolaridade em 2000 apresentaram os maiores que o casamento pode lhes proporcionar. Outras ganhos. Houve um grande avanço na convergência entre os meninas, grávidas, podem sofrer pressão da família para estados em relação às taxas de conclusão, principalmente se casar oficialmente. Esses casamentos muitas vezes no Ensino Fundamental 1. Porém, as diferenças no Ensino seguem a narrativa de que o homem está assumindo Fundamental 2 e Ensino Médio ainda são grandes. a responsabilidade pela menina que engravidou, ou o desejo da família de proteger sua reputação e a da menina (Greene et al., 2015). 6 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | ABRIL 2019 Nos estados, a prevalência do casamento na infância e adolescência diminuiu apenas marginalmente. Isso ocorre apesar dos grandes avanços no nível de escolaridade em todos os estados. CAIXA 2: FATORES CONDUCENTES AO CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NAS ÁREAS URBANAS DO BRASIL E AS CONSEQUÊNCIAS DO CASAMENTO PREMATURO O casamento na infância e adolescência costuma ser visto como uma questão primordialmente rural; de fato, a prevalência nas áreas rurais é mais alta, estimada em 25,6 por cento em 2015. Mas também é comum nas áreas urbanas, com prevalência de 18,6 por cento em 2015. Taylor et al. (2015) realizaram entrevistas semiestruturadas detalhadas nas áreas urbanas de Belém e São Luís, bem como uma pesquisa de pequena escala em São Luís. Com base na análise dos dois tipos de dados, eles identificaram cinco motivadores principais do casamento na infância e adolescência: (1) o desejo, muitas vezes de alguém da família, de lidar com uma gravidez indesejada para proteger a reputação da menina e da família e “garantir” que o homem se responsabilize pela menina e o bebê; (2) o desejo de controlar a sexualidade das meninas e limitar comportamentos tidos como “arriscados” associados às meninas solteiras, como encontros e sexo casual; (3) desejo da menina e/ou sua família de ter segurança financeira; (4) uma expressão da autodeterminação da menina e o desejo de sair da casa dos pais, ainda que dentro de um contexto de oportunidades limitadas de educação e emprego e experiências de abuso ou controle de sua mobilidade exercido pela família original; e (5) o desejo dos potenciais maridos de casar com meninas mais novas (vistas como mais atraentes, sexual e fisicamente, e mais fáceis de controlar do que mulheres adultas) e o poder de decisão desproporcional dos homens nos casamentos. Em termos das consequências do casamento na infância e adolescência, os autores destacam (1) a gravidez precoce (que às vezes também é o motivo do casamento) e seus problemas relacionados, em termos de saúde materna, neonatal e infantil; (2) retrocessos educacionais; (3) limitações à mobilidade e uso de redes sociais das meninas (ou seja, as expectativas de independência das meninas são, em grande parte, frustradas pela restrição da mobilidade); e (4) exposição à violência praticada pelo parceiro íntimo, incluindo uma série de comportamentos controladores e injustos por parte de seus maridos mais velhos. O estudo também concluiu que a proteção e os serviços disponíveis para as meninas casadas são inadequados e, muitas vezes, discriminatórios. Fonte: Reproduzido de Taylor et al. (2015) com pequenas edições. Quanto ao casamento na infância e adolescência, quando os estados aparecem abaixo da diagonal significa que Existe uma correlação clara houve progresso. Alguns estados progrediram na redução do casamento na infância e adolescência, mas o mesmo nos estados entre o nível de não ocorreu em outros estados; mesmo nos estados escolaridade e o casamento na com alguma redução na prevalência, o progresso ainda é bastante limitado, de modo geral. Claramente, o ritmo infância e adolescência, mas do progresso não é suficiente para atingir a meta dos também existem diferenças Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de acabar com o casamento infantil até 2030. expressivas entre os estados. ABRIL 2019 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | 7 Figura 1: Mudança na Conclusão do Ensino Fundamental 1 entre Meninas de 15 a 18 Anos em Nível Estadual, 2000-2015 (%) 100 90 80 PNAD 2015 70 60 50 40 40 50 60 70 80 90 100 Fonte: Male e Wodon (2018). Censo 2000 Figura 2: Mudança na Conclusão do Ensino Médio entre Meninas de 20 a 24 Anos em Nível Estadual, 2000-2015 (%) 70 60 50 PNAD 2015 40 30 20 10 10 20 30 40 50 60 70 Fonte: Male e Wodon (2018). Censo 2000 8 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | ABRIL 2019 Figura 3: Mudança na Prevalência do Casamento na Infância e Adolescência entre Meninas de 17 Anos em Nível Estadual, 2000-2015 (%) 35 30 25 PNAD 2015 20 15 10 5 0 0 5 10 15 20 25 30 Fonte: Male e Wodon (2018). Censo 2000 CAIXA 3: JOVENS QUE NÃO ESTUDAM NEM TRABALHAM NO BRASIL O casamento infantil e a gravidez precoce fazem parte dos fatores que levam as meninas a estarem fora da escola e do mercado de trabalho. Com base em entrevistas qualitativas com jovens homens e mulheres moradores de zona urbanas e rurais no Brasil, a pesquisa de Machado e Muller (2018) explora as dimensões de gênero em relação às barreiras e consequências para os que ‘não estudam nem trabalham’. Uma das principais conclusões da pesquisa é que o termo “nem-nem” não reflete as muitas diferenças e complexas realidades desse grupo de jovens altamente heterogêneo. O trabalho desenvolve, indutivamente a partir dos dados, uma tipologia desses jovens, que enfrentam diferentes barreiras ao longo da vida: a) barreiras à motivação interna, ou seja, falta de aspiração ou predisposição para voltar aos estudos ou ao trabalho, b) barreiras à realização, como a falta de ferramentas necessárias para realizar essa aspiração e c) barreiras externas, como desafios de conciliar emprego e sala de aula, poucos recursos financeiros ou qualificação, falta de transporte público seguro para se locomover entre uma atividade e outra, entre outros. A situação dos jovens em relação a essas realidades reflete o contexto social e as normas de gênero que permeiam suas vidas e aspirações. Esses padrões observados são particularmente predominantes nas zonas rurais, onde há uma percepção entre os jovens de menores oportunidades econômicas de qualidade e uma divisão mais acentuada dos papéis de gênero dentro do lar e nas atividades agrícolas, o que mantém as jovens em posições menos remuneradas ou não remuneradas. Os jovens com experiências bem-sucedidas em escolas técnicas, universidades ou trabalhos formais demonstram uma forte resiliência, o que parece ter por base suas relações com a família, colegas, parceiros e modelos positivos. Embora não seja possível discutir aqui as implicações deste trabalho de maneira detalhada, o estudo aponta para a importância das normas sociais e aspirações em produzir resultados diferentes para diferentes grupos. É importante levar em conta essas realidades quando se discutem políticas que visam investir em meninas - e meninos. Fonte: Machado e Muller (2018) ABRIL 2019 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | 9 RELAÇÕES ENTRE 2015, no eixo horizontal. A linha de tendência do gráfico de dispersão é responsável por mais de 40% da variação O CASAMENTO nos dados. A Figura indica o papel potencialmente muito relevante da conclusão do Ensino Médio para a redução NA INFÂNCIA E do casamento na infância e adolescência. ADOLESCÊNCIA, A Em termos da relação entre o casamento na infância e GRAVIDEZ PRECOCE E adolescência e a gravidez precoce no Brasil, Wodon et al. (2019) sugere uma abordagem simples para medir A ESCOLARIDADE DAS a incidência de gravidez precoce que se pode atribuir ao casamento na infância e adolescência com base MENINAS no momento do casamento e do nascimento do filho utilizando dados de PDS. As estimativas obtidas para o Brasil indicam que pouco mais da metade de todos os O fato de que a prevalência do casamento na infância e casos de maternidade precoce parecem ser resultado do adolescência não diminuiu expressivamente nos estados, casamento na infância e adolescência. Essa proporção é ao passo que houve, de fato, um aumento do nível substancialmente menor no Brasil em comparação com de escolaridade nos faz atentar para a intensidade da muitos outros países em desenvolvimento para os quais relação entre o casamento na infância e adolescência e uma análise semelhante foi realizada. Em outras palavras, a escolaridade no Brasil. Embora não tão forte quanto cerca de metade dos casos de casamentos na infância e em outros países, essa relação existe. O casamento na adolescência são provavelmente devidos a uma gravidez infância e adolescência, a gravidez precoce e a baixa precoce, enquanto na outra metade dos casos, a gravidez escolaridade das meninas são questões intimamente não parece estar atribuída a um casamento prematuro. relacionadas. Elas afetam umas às outras. Trabalhos econométricos também sugerem uma forte Um exame superficial dos dados ajuda a visualizar a relação entre o casamento na infância e adolescência e o relação entre a escolaridade e o casamento na infância e nível de escolaridade das meninas (ver, por exemplo, Field adolescência. Na Figura 4, a taxa de conclusão do Ensino e Ambrus, 2008, e Nguyen e Wodon, 2014). Além disso, Médio em 2015 aparece no eixo vertical e a taxa de ao responder por que suas filhas abandonaram a escola, prevalência do casamento na infância e adolescência em os pais que participam das pesquisas e grupos focais com Figura 4: Relação entre o Nível de Escolaridade e o Casamento na Infância e Adolescência, 2015 (%) 70 65 Conclusão do Ensino Médio, 2015 (%) 60 55 50 45 40 35 0 5 10 15 20 25 30 Prevalência do Casamento na Infância e Adolescência, 2015 (%) Fonte: Male e Wodon (2018). 10 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | ABRIL 2019 frequência citam casamento e gravidez (Michelazzo et al 2004). Segundo Almeida e Aquino (2011), de cada dez meninas que ficam grávidas na adolescência, sete não conseguem concluir o Ensino Médio. Por outro lado, um terço das meninas de 15 a 17 anos que abandonaram a escola podem ser mães adolescentes (Instituto, 2016). Narita e Diaz (2016) sugerem que reduzir a gravidez na adolescência em um desvio padrão pode aumentar a taxa de conclusão do Ensino Médio em cerca de 9,2%; já Silva e Botelho (2016) observam que, entre as jovens de baixa escolaridade e sem renda, a probabilidade de ser casada é alta. Finalmente, há também um efeito intergeracional: quando o nível de escolaridade das meninas cai, o casamento na infância e adolescência e a gravidez precoce Em reconhecimento aos direitos das crianças de serem trazem consequências para as oportunidades disponíveis protegidas do casamento precoce e seus impactos para as crianças nascidas de mães jovens. Parece razoável negativos, instrumentos internacionais e regionais concluir que o casamento na infância e adolescência recomendam que os países estipulem a idade mínima legal e a gravidez precoce têm um efeito negativo sobre o para o casamento em, no mínimo, 18 anos para meninas nível de escolaridade. Por outro lado, a permanência e meninos, com ou sem o consentimento dos pais, e das meninas na escola reduz enormemente os riscos de sem outras exceções. Como observado por Wodon et al. casamento na infância e adolescência e gravidez precoce. (2017), na maioria dos países, o casamento na infância e Isso também ocorre no Brasil. Ao mesmo tempo, tanto a adolescência é consequentemente proibido pela legislação literatura quanto os dados apresentados nas Figuras 4 e nacional. De fato, a maioria dos países (incluindo o Brasil) 5 sugerem que a relação entre o casamento na infância já adotou a idade mínima de 18 anos para as meninas se e adolescência e a escolaridade não é infalível. Há muita casarem, e alguns países impõem idades mais altas. Mas variação entre os estados nos dois indicadores, indicando mesmo quando a idade legal é 18 anos ou mais, a maioria a importância de outros fatores que também contribuem dos países permite que as meninas se casem mais jovens para os resultados das adolescentes. com a autorização de seus pais ou do judiciário, bem como em outras circunstâncias, como no caso de gravidez2. O fato de que muitos países não dispõem de sanções PROTEÇÕES LEGAIS legais para aqueles envolvidos em casamentos infantis pode exacerbar o problema. Quando não há sanções, a CONTRA O CASAMENTO lei é menos eficaz na prevenção da prática. Além disso, em muitos países, não existe a opção legal de anular ou INFANTIL invalidar casamentos contraídos abaixo da idade mínima. Na ausência dessas opções, as meninas indispõem de Internacionalmente, o limite etário usado na definição recurso legal para sair do casamento. de “criança” (e, portanto, de casamento infantil) é 18 anos de idade, englobando a infância e adolescência. 2 Ponderar se a lei deve ou não permitir o casamento abaixo dos 18 anos no Esse limite é usado em várias convenções, tratados e caso de meninas que engravidam na adolescência é uma questão complexa. Em alguns casos, pode ser benéfico o casamento quando a menina engravida, mas acordos internacionais, incluindo a Convenção sobre os em outros casos, não. Direitos da Criança, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ver Na maioria dos países, a idade legal Caixa 4). O limite etário faz sentido por vários motivos. para o casamento é 18 anos ou mais. Primeiro, as pesquisas sugerem que meninos e meninas menores de 18 anos geralmente são jovens demais para Porém, muitos países ainda permitem transições sexuais, conjugais e reprodutivas. Casar-se que as meninas se casem antes dos antes dos 18 anos também pode ter grandes impactos negativos em uma série de outros resultados para as 18 anos com o consentimento dos meninas e seus filhos. Por exemplo, em muitos países pais ou autorização judicial. Além 18 anos é a idade de conclusão do Ensino Médio. O casamento precoce reduz a probabilidade de as meninas disso, muitas meninas se casam antes concluírem o Ensino Médio. Além disso, tipicamente as de atingir a idade mínima para o meninas são incapazes de consentir livre e plenamente ao casamento1. casamento em seu país. 1 Muitas vezes, há uma disparidade entre a idade de maioridade civil e a idade mínima para o casamento. As convenções internacionais sugerem que esta é uma questão que precisa ser alinhada na legislação. ABRIL 2019 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | 11 CAIXA 4 - CONTEXTO E ARCABOUÇO JURÍDICO INTERNACIONAL Tratados internacionais e regionais de direitos humanos garantem o direito de todas as pessoas de se casarem com o consentimento livre e pleno de ambas as partes. Este direito está consagrado no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (Art. 23, parágrafo 3) e no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Art. 10, parágrafo 1), bem como em vários instrumentos regionais1, incluindo a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) (Art. 17 (3)). Reconhecido internacionalmente como motivo de violações dos direitos humanos, o casamento infantil é entendido uma como união que envolve pelo menos um cônjuge com idade inferior a 18 anos. Essa definição já foi confirmada por várias convenções, incluindo a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) das Nações Unidas, que o Brasil assinou e ratificou em 1990. O casamento infantil também é uma violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Art. 16 (2)), que garante o direito de todos os indivíduos de contrair matrimônio com o livre e pleno consentimento de ambas as partes, e da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW) (Art. 16), que determina que esse direito seja igualmente assegurado a homens e mulheres. Tanto a CEDAW (Recomendação Geral No. 21, 1994) quanto o Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança recomendam que os países estipulem 18 anos como a idade mínima para o casamento, sem exceções. De acordo com esses compromissos, os países têm a responsabilidade de incorporar as leis internacionais em seus sistemas legais e tomar todas as medidas necessárias (legislativas ou outras) para garantir seu cumprimento. Em cumprimento de sua responsabilidade decorrente da ratificação da CDC, o Brasil promulgou, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente. O Estatuto, no entanto, difere da CDC em sua definição de “criança” e estabelece duas categorias de menores de 18 anos de idade: crianças (abaixo de 12 anos) e adolescentes (de 12 a 18 anos). Em relação ao casamento, o Código Civil Brasileiro estabelece a maioridade legal aos 18 anos (Art. 5). No entanto, o casamento é permitido aos 16 anos com o consentimento de ambos os pais ou autorização judicial (Art. 1.517). Fonte: Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights (2014). 1 Protocolo da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos sobre os Direitos das Mulheres na África (2003), Art. 6 (a); Protocolo da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) sobre Gênero e Desenvolvimento (2008), Art. 8, para. 2 (b); Declaração de Direitos Humanos da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) (2012), Art. 19; Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), Art. 17 (3). A Tabela 2 apresenta dados sobre a idade legal para o casem aos 16 anos ou antes, com o consentimento dos casamento no Brasil e em outros países da América Latina pais ou autorização judicial. Globalmente, três quartos dos e Caribe. Os dados são provenientes dos bancos de dados e países ainda preveem exceções legais, criando brechas na relatórios mais recentes do programa Mulheres, Empresas lei que permitem que as meninas se casem abaixo dos 18 e o Direito (World Bank, 2018)1. Em relação ao casamento anos com o consentimento dos pais ou autorização judicial infantil, os dados do programa Mulheres, Empresas e - ou em outras circunstâncias, como a gravidez. Em um o Direito cobrem a legislação sobre a idade legal para o em cada cinco países, o casamento abaixo da idade mínima casamento de meninas e meninos, incluindo exceções com não é explicitamente nulo ou anulável; um em cada três o consentimento dos pais e autorização judicial, bem como países não prevê sanções para as pessoas envolvidas no se os casamentos em violação dos requisitos de idade são casamento infantil. considerados nulos ou anuláveis, e se há penalidades para aqueles que autorizaram ou contraíram matrimônio em violação das restrições de idade. Globalmente, nove países implementaram Conforme ilustrado na Tabela 2, embora a idade mínima legal para o casamento de meninas seja 18 anos (ou mais) reformas positivas em suas leis entre 2015 em todos os países da América Latina e do Caribe, em e 2017: Chade, Costa Rica, Equador, muitos há exceções que permitem que as meninas se Guatemala, Malauí, México, Nepal, Panamá 1 Além dos dados sobre a idade mínima para o casamento, os relatórios fornecem medidas quantitativas das leis e regras que afetam as oportunidades e Zimbábue. No Brasil, uma reforma econômicas das mulheres em sete áreas: acesso às instituições, uso da propriedade, acesso ao emprego, incentivos ao trabalho, acesso aos tribunais, implementada em março de 2019 eliminou acesso ao crédito e proteção da mulher contra a violência. Os dados do programa Mulheres, Empresas e o Direito baseiam-se em leis e regulamentos brechas que antes permitiam o casamento estatutários ou codificados em sistemas de direito civil, bem como em jurisprudência - que, nos sistemas de Common Law, é a lei estabelecida por abaixo dos 16 anos, mas a lei ainda permite decisões judiciais em casos que estabelecem precedentes vinculantes. O Direito Consuetudinário não é contabilizado, a menos que tenha sido codificado ou o casamento aos 16 com consentimento dos confirmado pela jurisprudência. As respostas baseiam-se unicamente na letra da lei e não na aplicação ou execução das mesmas. pais ou autorização judicial. 12 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | ABRIL 2019 Tabela 2: Idade Mínima para o Casamento de Meninas em Países da América Latina e do Caribe Legislação em 2017 Legislação em 2015 Idade Mínima Idade Mínima Idade Idade Mínima Idade Idade Mínima com o com o Legal para o com Autorização Legal para o com Autorização Consentimento Consentimento Casamento Judicial Casamento Judicial dos Pais dos Pais Antígua e Barbuda 18 15 15 18 15 15 Argentina 18 16 0 18 16 0 Bahamas, As 18 15 18 18 15 18 Barbados 18 16 16 18 16 16 Belize 18 16 16 18 16 16 Bolívia 18 16 16 18 16 16 Brasil 18 16 16 18 16 16 Chile 18 16 16 18 16 16 Colômbia 18 14 18 18 14 18 Costa Rica 18 18 18 18 15 15 República Dominicana 18 15 0 18 15 0 Equador 18 18 18 18 12 16 El Salvador 18 18 18 18 18 18 Granada 18 16 16 18 16 16 Guatemala 18 18 16 18 14 14 Guiana 18 16 16 18 16 16 Haiti 18 15 15 18 15 15 Honduras 21 16 18 21 16 18 Jamaica 18 16 16 18 16 16 México 18 18 18 18 14 14 Nicarágua 18 16 18 18 16 18 Panamá 18 18 18 18 14 18 Paraguai 18 16 16 20 16 14 Peru 18 18 16 18 18 16 São Cristóvão e Névis 18 16 16 18 16 16 Santa Lúcia 18 16 16 18 16 16 São Vicente e Gr. 18 15 15 18 15 15 Suriname 18 18 18 21 18 18 Trinidad e Tobago 18 0 18 18 0 18 Uruguai 18 16 16 18 16 16 Venezuela 18 16 16 18 16 16 Fonte: Wodon et al. (2017), a partir de dados do programa Mulheres, Empresas e Direito no Banco Mundial, com edições. Os dados refletem as leis em vigor em junho de 2017. Embora alguns países - incluindo Costa Rica, Equador, casamento aos 16 anos com o consentimento dos pais ou Guatemala, México e Panamá - tenham melhorado suas autorização judicial2. Na América Latina e no Caribe, leis referentes ao casamento infantil entre 2015 e 2017, normalmente com a eliminação ou redução de exceções 2 Em março de 2019, foi promulgada a Lei 13.811, que confere nova redação ao Art. 1.520 do Código Civil, para suprimir as exceções legais permissivas ao ca- como o consentimento dos pais ou autorizações judiciais, samento infantil. Com a nova lei, o Art. 1.520 passa a determinar que “não será o mesmo não ocorreu no Brasil. No Brasil, o Código Civil permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, [...]”. Até a promulgação da nova lei, em 12 de março de 2019, o Art. 1.520 do estabelece a idade legal para o casamento aos 18 anos Código Civil permitia o casamento de menores de 16 anos em caso de gravidez para homens e mulheres, mas exceções na lei permitem o ou para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal. A nova lei, porém, não revoga a exceção que permite o casamento entre 16 e 18 anos de idade com o consentimento dos pais ou autorização judicial. ABRIL 2019 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | 13 Embora a legislação, por si só, não seja nenhuma panaceia, ela pode ter um papel importante na erradicação de No Brasil, a idade legal para o casamentos infantis e outras práticas prejudiciais. As casamento é 18 anos. No entanto, leis dão um sinal importante de que a prática não é devido a exceções legais, o tolerada e podem ter o efeito de dissuadir possíveis infratores. Estudos sobre a contribuição da legislação são casamento é permitido aos 16 anos inconclusivos e, mesmo em muitos países com leis rígidas, com o consentimento dos pais ou os casamentos ainda acontecem abaixo da idade mínima estipulada para o casamento (Wodon et al., 2017). Isto autorização judicial. Além disso, ocorre, em parte, devido à falta de fiscalização e a normas não existem sanções legais para os culturais e sociais que perpetuam a prática. Além de envolvidos em casamentos infantis leis, são necessárias outras medidas para tratar as causas subjacentes do casamento na infância e adolescência e a lei não prevê a opção de anular e ampliar o acesso ao ensino de qualidade e outras os casamentos infantis. oportunidades para as meninas. A próxima seção analisa algumas das possíveis intervenções. apenas a Venezuela e a Guiana ainda mantém exceções adicionais, que permitem o casamento a qualquer idade por motivo de gravidez. INTERVENÇÕES PARA As exceções que permitem o casamento em tenra idade ADIAR O CASAMENTO E com o consentimento dos pais e autorização judicial A GRAVIDEZ deixam muitas meninas legalmente desprotegidas contra o casamento infantil. É o que acontece com cerca de 100 milhões de meninas no mundo inteiro Investimentos para adiar o casamento podem gerar e um terço das meninas de 10 a 17 anos na América grandes benefícios econômicos. Existem três razões Latina e no Caribe (Wodon et al., 2017). No Brasil, principais que explicam a rentabilidade dos investimentos isso equivale a 3,4 milhões de meninas entre 16 e 18 nas meninas adolescentes. Primeiro, investimentos feitos anos, atualmente desprotegidas pela lei. Além disso, em mais cedo tendem a gerar resultados mais duradouros, alguns países, a idade mínima para o casamento segue pois, após a intervenção, costumam ter efeitos durante leis consuetudinárias ou religiosas, muitas vezes inferior toda a vida da mulher. Quando a menina conclui o ao limite estipulado por lei, o que também enfraquece Ensino Médio ou evita o casamento precoce, isso gera as proteções legais. Por esses motivos, a proteção que a lei geralmente garante às meninas contra o casamento benefícios que perduram por muitos anos. Em segundo infantil é limitada, especialmente quando há exceções que lugar, o custo das intervenções na adolescência e, em permitem casamentos precoces. alguns casos, até antes, tende a ser inferior ao custo de intervenções implementadas mais tarde na vida. Terceiro, Em suma, as leis têm evoluído em muitos países em uma idade formativa, as intervenções podem ter mais da região (e em todo o planeta) para cumprir com sucesso na influência de valores e comportamentos - não padrões internacionais e regionais, com base no maior apenas das meninas, mas também de comunidades e reconhecimento dos direitos das crianças e dos impactos sociedades como um todo. Mais tarde na vida, pode ser negativos do casamento infantil. As mudanças legislativas mais difícil para as meninas e mulheres tirarem pleno incluem emendas para elevar a idade mínima de proveito de novas oportunidades. Isso não significa que casamento para 18 anos de idade para meninas e meninos, não devam ser oferecidas oportunidades também na idade eliminar exceções e introduzir medidas que proíbem e adulta, mas a adolescência é um momento crucial para invalidam o casamento infantil, bem como sanções contra se investir nas meninas. Para acabar com o casamento na as pessoas envolvidas na prática do casamento infantil. infância e adolescência e a gravidez precoce e possibilitar Globalmente, entre junho de 2015 e junho de 2017, a todas as meninas concluírem o Ensino Médio, algumas nove países realizaram mudanças positivas em suas leis condições gerais devem ser cumpridas. Além delas, outras - cinco deles na América Latina: Costa Rica, Equador, intervenções específicas também podem ajudar. Guatemala, México, Panamá. Mais recentemente, outros países da América Latina e do Caribe seguiram o mesmo caminho, incluindo, por exemplo, El Salvador, Honduras e Trinidade e Tobago. 14 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | ABRIL 2019 CONDIÇÕES GERAIS financeiros e de oportunidade do Ensino Médio ainda são demasiadamente elevados. Intervenções direcionadas e com incentivos adicionais - como o programa Bolsa Escola, em vigor já há muito tempo Foge ao escopo desta nota realizar uma análise ampla do no Brasil - também podem ser necessárias, bem que precisa ser feito para eliminar o casamento infantil e a como a redução desses custos. gravidez precoce de uma vez por todas e garantir o Ensino Médio universal para as meninas. Porém, o melhor caminho • Quarto, também contribuem iniciativas voltadas a para eliminar o casamento na infância e adolescência desenvolver habilidades cognitivas, socioemocionais e a gravidez precoce é, provavelmente, mantendo as e técnicas, transformar normas sociais, para que adolescentes na escola. Programas específicos podem as meninas tenham oportunidades adequadas de ser úteis nesse sentido (veja na Caixa 4 os resultados de emprego quando terminarem o ensino médio. experiências internacionais), mas uma série de condições Além de políticas relacionadas à educação, são necessários gerais também devem ser adotadas nos sistemas de ensino. mais esforços para mudar as normas sociais que Essas condições gerais talvez não sejam atendidas em todos perpetuam a desigualdade de gênero de uma geração para os estados ou áreas dos estados brasileiros. outra. Esse assunto não foi discutido em detalhes neste • Primeiro, há a necessidade de garantir a qualidade e estudo por uma questão de brevidade, mas as questões de o engajamento contínuo das crianças na escola, para casamento na infância e adolescência, gravidez precoce e evitar o abandono por falta de interesse. Isso pode baixa escolaridade das meninas fazem parte de padrões de ser feito através da reforma curricular. Em algumas desigualdade de gênero com raízes profundas (Klugman áreas, também pode haver a necessidade de ampliar et al., 2014). Reformas mais amplas se fazem necessárias a infraestrutura de ensino - principalmente em áreas para mudar as normas sociais e outras restrições que remotas, caso a distância para a escola seja muito limitam as oportunidades das meninas. Também é grande. As escolas também precisam oferecer acesso preciso adotar intervenções específicas que vão além a água, latrinas e instalações higiênicas, importantes das reformas, já que a prevalência do casamento infantil para as adolescentes. Finalmente, são necessárias continua alta mesmo em países que adotaram campanhas intervenções para garantir que as meninas não sejam de comunicação e leis contra essa prática. Conforme assediadas na escola ou no caminho para a escola. observado por Wodon, Tavares et al. (2017), a maioria dos casamentos infantis ocorre abaixo da idade mínima legal • Em segundo lugar, o sistema de ensino precisa para o casamento adotada pelos países, o que significa que garantir o aprendizado. Em muitos países (inclusive as leis não são suficientes. no Brasil), o desempenho é baixo, conforme medido por avaliações nacionais e internacionais de alunos (World Bank, 2018). Isso pode ser revertido por meio de investimentos no sistema de ensino, para melhorar INTERVENÇÕES tanto o acesso quanto a qualidade. • Terceiro, para alcançar todas as meninas e meninos, ESPECÍFICAS o ensino deve ser acessível financeiramente para os pais. Embora no Brasil as escolas públicas sejam Com o objetivo de sugerir opções de programas gratuitas e haja programas bem desenvolvidos para direcionados, esta seção resume as evidências internacionais oferecer incentivos adicionais para as famílias mais disponíveis sobre três tipos de intervenções voltadas para as pobres manterem meninas (e meninos) na escola adolescentes: (1) programas que proporcionam habilidades (como, por exemplo, o programa Bolsa Escola), para a vida e conhecimentos sobre a saúde reprodutiva; ainda pode ser necessário para populações altamente (2) programas que ampliam as oportunidades econômicas; vulneráveis reduzir os custos de oportunidade, e (3) programas que mantêm as meninas na escola ou principalmente no Ensino Médio. Os custos possibilitam que elas retornem às aulas. O foco nesses três ABRIL 2019 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | 15 CAIXA 5: O AUMENTO DA ESCOLARIDADE E DO APRENDIZADO ENTRE AS MENINAS Vários motivos podem contribuir para as diferenças de gênero na escolaridade e no aprendizado. Por isso, há também vários tipos de intervenções para colmatar essas lacunas. Será que a distância até a escola deve ser reduzida, seja pela construção de novas escolas em áreas remotas ou pela redução do tempo de deslocamento através de meios de transporte? Devem ser oferecidas bolsas de estudo para as meninas? Devem ser contratadas mais professoras (do sexo feminino)? Será que a prioridade deve ser a disponibilização de banheiros separados para meninos e meninas? Devemos dar mais ênfase à compreensão ou à mudança das práticas culturais? Devem ser implementadas intervenções pedagógicas voltadas para as meninas? A escolha das intervenções certas vai depender do contexto do país ou comunidade em questão. No entanto, a revisão de evidências pode ajudar; essas revisões vêm se tornando cada vez mais disponíveis, graças ao grande aumento do volume de avaliações rigorosas de impacto nos últimos anos. Uma dessas revisões foi elaborada por Unterhalter et al. (2014) para avaliar as evidências sobre o impacto de intervenções focadas na escolaridade das meninas, com foco em intervenções (i) que fornecem recursos (incluindo as transferências) e infraestrutura, (ii) mudam instituições e (iii) mudam as normas e incluem os mais marginalizados no processo de tomada de decisões sobre a educação. Essa revisão resume o impacto de vários tipos de intervenções em três resultados: participação, aprendizagem e empoderamento. Para cada tipo de intervenção e categoria de resultado, as evidências sobre a probabilidade de impacto foram classificadas como fortes, promissoras, limitadas ou necessárias (ou seja, fracas). Em relação à participação, as evidências sobre o impacto das transferências condicionadas de renda, as informações sobre os retornos potenciais do emprego para a educação e a disponibilidade de escolas adicionais em áreas carentes e inseguras foram consideradas fortes. O mesmo aconteceu com as evidências de algumas intervenções relacionadas à formação de professores, aprendizagem em grupo e medidas para promover escolas seguras para as meninas, além do ensino fora da sala de aula, por exemplo, com tutores. De acordo com os resultados, muitas destas intervenções (aprendizagem em grupo, programas de aprendizagem fora da sala de aula e bolsas de estudo condicionadas ao desempenho do aluno) também têm um impacto na aprendizagem. As evidências sobre o impacto das intervenções no empoderamento foram, geralmente, mais fracas. Fonte: Unterhalter et al. (2014). tipos de intervenções deriva de um conjunto de evidências EMPODERAMENTO DAS MENINAS que mostra que as medidas podem gerar impactos positivos. Acredita-se que os três tipos de programas tenham o A primeira categoria de programas enfatiza o potencial de adiar o casamento e a gravidez e aumentar a empoderamento das meninas e proporciona habilidades escolaridade de diferentes formas. Eles seguem teorias de para a vida e conhecimentos sobre saúde reprodutiva. mudança diferentes (ver Caixa 6). Os resultados resumidos A intervenção típica é a de “clubes seguros” para as abaixo são baseados em cerca de 40 intervenções meninas adolescentes. Esses clubes são plataformas analisadas por Botea et al. (2017). As intervenções tiveram que preencher os seguintes critérios de seleção para inclusão na análise: (1) Devem ser voltadas para meninas de 10 a 19 anos de idade, exclusivamente ou como parte Na ausência de outras intervenções, de um grupo-alvo mais amplo; (2) Devem proporcionar os programas de espaços seguros habilidades para a vida e conhecimentos de saúde sexual podem não ser suficientes para e reprodutiva (SSR), oportunidades econômicas ou oportunidades de educação; (3) Devem gerar resultados adiar o casamento e a maternidade que melhoram a saúde das mulheres jovens, principalmente e aumentar a escolaridade. Mesmo no sentido de adiar o casamento e a maternidade e em termos de SSR; e (4) devem ter sido testadas em um país assim, no entanto, eles geram em desenvolvimento, geralmente na África subsaariana mas resultados intermediários importantes, também em outros locais de baixa renda, como Bangladesh relacionados (entre outros) às ou partes da Índia (ver também outra análise de evidências internacionais em Kalamar et al., 2016). aspirações e autoestima, confiança e conhecimentos de SSR. 16 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | ABRIL 2019 onde as meninas se reúnem com um mentor adulto e das meninas, para que possam explorar e concretizar suas de confiança, em horário e local específicos. Foi uma aspirações. Em muitos casos, os clubes seguros também abordagem pioneira da BRAC no sul da Ásia e do ​​ são usados para o ensino de hard skills - competências Population Council na África e na América Latina. Os básicas como alfabetização e matemática e noções básicas clubes se mostraram eficazes quando bem implementados. do mundo dos negócios. Ao reunirem atividades de socialização, diversão e acesso a mentores, os clubes são ambientes atraentes para as Esses programas ajudaram a melhorar os conhecimentos meninas. A partir daí, são oferecidos outros serviços. e comportamentos relativos à SSR. Também geraram um Os clubes podem ser realizados em diversos ambientes, aumento dos testes de HIV e aconselhamento para as incluindo escolas e centros comunitários. As meninas meninas; um aumento do uso de métodos contraceptivos se reúnem regularmente e podem, com a ajuda de modernos ou outros métodos de planejamento familiar; mentores, discutir uma série de questões, incluindo uma redução do desejo de praticar a mutilação genital temas relacionados à SSR. Nessas reuniões, as meninas feminina das filhas em países onde a prática é prevalente; aprendem “habilidades para a vida”, incluindo soft skills uma redução do risco de violência pelo parceiro íntimo, (habilidades socioemocionais) como pensamento crítico, quando o programa inclui também os homens; um resolução de problemas, comunicação e negociação (por aumento da autoestima; e ganhos em habilidades exemplo, dentro da própria casa). Com frequência, um específicas transmitidas em sessões em espaços seguros, dos objetivos é fomentar a autoconsciência e a autoestima por exemplo, em matéria de alfabetização financeira ou alfabetização e numeração básica. CAIXA 6: TEORIAS DE MUDANÇA PARA INTERVENÇÕES DIRECIONADAS ÀS ADOLESCENTES Habilidades para a vida e conhecimentos de SSR: as habilidades para a vida ampliam os conhecimentos e a conscientização, com o efeito potencial de aumentar o risco percebido das jovens de engravidar em idade precoce e o desejo de evitar a gravidez precoce (por meio de planejamento familiar). Através desses canais, as habilidades para a vida podem gerar melhores resultados de saúde para as meninas e seus filhos. Ao fortalecer a confiança e a autoestima, as habilidades para a vida também podem aumentar as aspirações das meninas. Com aspirações mais elevadas, as meninas podem preferir adiar o casamento e a maternidade. Finalmente, as habilidades para a vida podem também aumentar a capacidade das jovens de se comunicar e tomar decisões e, portanto, a capacidade de negociar sua preferência por adiar o casamento e a gravidez. Ao mesmo tempo, embora as habilidades para a vida e os conhecimentos de SSR fortaleçam as meninas, podem não ser suficientes para postergar o casamento e a maternidade se não forem tratadas, em paralelo, as normas sociais que restringem a autodeterminação das meninas. Habilidades para a vida em conjunto com oportunidades econômicas: Os programas que aumentam o potencial de renda das mulheres jovens podem aumentar sua capacidade de planejar as decisões sobre o casamento e a gravidez de três maneiras. Primeiro, a possibilidade contribuir economicamente amplia o papel das mulheres para além do sexo e da reprodução. Isso pode aumentar o desejo das mulheres de limitar ou espaçar suas gestações. Essa transformação das meninas - que deixam de ser passivos econômicos e passam a ser vistas como ativos pela sociedade e suas famílias - também pode aliviar as pressões externas para as meninas se casarem ou terem filhos mais cedo. Em segundo lugar, a queda dos rendimentos associada à gestação é um custo de oportunidade que pode aumentar o desejo das mulheres de limitar ou espaçar as gestações e exercer o controle reprodutivo. Terceiro, o aumento dos rendimentos das jovens pode aumentar também o seu poder de barganha dentro de casa, permitindo que exerçam, efetivamente, o controle reprodutivo, negociem o adiamento do início da vida sexual ou do casamento e também os termos da vida sexual, incluindo o uso de métodos contraceptivos. Criar oportunidades de geração de renda para as mulheres pode, portanto, contribuir para o empoderamento feminino além do âmbito econômico, ampliando a escolha pessoal e o controle sobre a SSR. Incentivos para a escolarização e para adiar o casamento: Em muitas comunidades, o ambiente econômico, cultural e social não oferece alternativas viáveis para as adolescentes além do casamento. Quando as meninas abandonam a escola, possivelmente por causa da má qualidade ou alto custo, pode ser difícil para os pais não casarem as filhas. Nessas comunidades, aumentar a oferta de Ensino Fundamental e Médio de qualidade e acessível pode ser uma das melhores maneiras de adiar o casamento e a maternidade, já que os pais muitas vezes veem a educação como uma alternativa viável ao casamento para suas filhas. Incentivos e programas para manter as meninas na escola também podem gerar “pontos de inflexão” nas comunidades, fazendo com que cada vez mais as meninas fiquem na escola e adiem o casamento. Algumas intervenções também visam adiar o casamento por meio de incentivos financeiros para quem não se casar cedo e, em muitos casos, com benefícios adicionais de escolarização. Fonte: Botea et al. (2017). ABRIL 2019 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | 17 CAIXA 7: COMPETÊNCIAS E EMPREGOS ­­‑ UMA AGENDA PARA A JUVENTUDE A necessidade de garantir que as meninas de origens socioeconômicas desfavorecidas possam permanecer na escola para evitar o casamento e a gravidez precoces está relacionada à agenda mais ampla de competências e empregos para a juventude do país. Um estudo recente de Almeida e Packard (2018) trata do desafio do engajamento econômico entre os jovens brasileiros. No contexto de um rápido “envelhecimento” da população, a maior oportunidade econômica do país é aumentar a produtividade do trabalho, principalmente entre os jovens. O relatório apresenta novos fatos importantes sobre a extensão do desengajamento econômico dos jovens, mesmo entre os que estudam e trabalham. Hoje, quase a metade dos jovens brasileiros na faixa de 15-29 anos não está plenamente engajada economicamente. Isso se dá seja porque esses jovens não estudam nem trabalham, ou, entre os que estudam ou trabalham, porque estão em escolas de baixa qualidade ou em trabalhos informais e instáveis. O relatório mostra como as perspectivas dos jovens no mercado de trabalho são ofuscadas por políticas existentes que favorecem os “já incluídos” (principalmente mais velhos) às custas das oportunidades para os mais jovens. Além disso, mostra como os jovens estão frequentemente mal capacitados para enfrentar um mercado de trabalho cada vez mais competitivo. O relatório sobre competências e empregos oferece ideias concretas para melhorar a educação, as competências profissionais e as políticas de emprego no contexto da última onda da transição demográfica do Brasil. O relatório inclui uma discussão aprofundada sobre políticas direcionadas a aumentar o aprendizado e reduzir as taxas de abandono no ensino médio - o que é fundamental para evitar o casamento na infância e adolescência e a gravidez precoce das meninas, bem como políticas trabalhistas que facilitem transições mais rápidas e eficazes da escola para o mercado de trabalho. Embora não seja possível discutir aqui de maneira detalhada as recomendações do relatório, elas fazem parte do que é necessário para a formulação de políticas abrangentes que visam investir nas meninas, bem como nos meninos, para garantir que a juventude e o país alcancem seu potencial de desenvolvimento. Fonte: Almeida e Packard (2018). Ao mesmo tempo, sem intervenções adicionais relacionadas à escolaridade, emprego e meios de subsistência, não está claro se os espaços seguros são Intervenções que combinam a suficientes para adiar o casamento e a maternidade (embora esse não tenha sido um dos objetivos principais ênfase no empoderamento das desses projetos). Portanto, é importante considerar meninas (muitas vezes em clubes programas nos quais os espaços seguros foram seguros) com oportunidades de combinados com oportunidades de subsistência e incentivos para permanecer na escola, geralmente com subsistência podem melhorar os maiores impactos sobre a idade de casamento e gravidez. resultados de saúde reprodutiva e adiar o casamento ou a maternidade. FORNECENDO OPORTUNIDADES Foi o que aconteceu em Uganda, DE EMPREGO por exemplo, mas em outros países A segunda categoria de programas combina uma ênfase a mudança não foi sistemática. no empoderamento das meninas, muitas vezes em espaços seguros, com um foco adicional em proporcionar Visto que, com frequência, essas oportunidades de subsistência. Estes programas são são as únicas opções disponíveis voltados para meninas que não estão na escola. Para essas para as meninas fora da escola, são meninas, o fortalecimento de habilidades que geram renda pode ser uma alternativa ao casamento e à maternidade necessárias mais pesquisas para precoces. É feita uma distinção entre dois grupos de descobrir quais são as intervenções intervenções: intervenções de subsistência e alfabetização financeira/acesso a serviços financeiros. Seus impactos na que realmente funcionam - e idade do casamento e na gravidez precoce tendem a ser também o que não funciona. maiores do que em intervenções apenas com habilidades 18 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | ABRIL 2019 para a vida e conhecimentos de SSR, mas não em todos os casos. Dos três tipos de intervenções Devido a seu foco nas oportunidades econômicas, os programas costumam ter algum sucesso em matéria de analisadas neste estudo, as aumento de ganhos, emprego e/ou poupança. Muitos intervenções que promovem a dos programas também conseguem aumentar o uso de educação - incluindo a redução métodos contraceptivos modernos e conhecimentos de SSR, fatores que também podem ajudar a adiar dos custos financeiros e de a gravidez. Em alguns casos, os programas também oportunidade da educação - têm conseguem adiar o casamento e reduzir o índice de gravidez na adolescência. Por exemplo, o BRAC maior probabilidade de ajudar a Uganda Empowerment and Livelihoods for Adolescent adiar o casamento e a maternidade. Girls (Empoderamento e Subsistência das Adolescentes da BRAC Uganda) (1) aumentou a probabilidade de participação das mulheres em atividades geradoras de com eficácia, os resultados escolares das crianças em renda em 32 por cento; (2) aumentou o uso rotineiro (e países em desenvolvimento; até o momento, as TCRs já auto relatado) de preservativos por pessoas sexualmente foram adotadas em mais de 29 países de baixa renda no ativas em 50 por cento; (3) reduziu as taxas de mundo inteiro. Os programas de transferência de renda fecundidade em 26 por cento; e (4) reduziu as queixas (TR) e o apoio à renda também apresentam resultados de sexo indesejado em 76 por cento. Houve também positivos, como a redução do trabalho infantil, o aumento reduções nos índices de gravidez na adolescência e de da escolaridade e a melhoria da nutrição infantil (ver, por casamento infantil, bem como uma mudança na dinâmica exemplo, Bastagli et al., 2016, no Malaui). Nem todos de gênero na comunidade (Bandiera et al. 2014 e os programas são bem-sucedidos em todas as áreas, mas Buehren et al. 2016). A análise indica que a dimensão dos as evidências indicam que, em comparação aos outros meios de subsistência, quando agregada às habilidades acima, os que se dois tipos de programas analisados ​​ para a vida e programas de conhecimento de SSR, pode concentram na escolarização das meninas ou, em alguns ajudar a adiar o casamento e a maternidade, mas não em casos, em adiar o casamento por meio de incentivos todos os casos. O foco em oportunidades econômicas financeiros podem, de fato, ter mais sucesso em adiar o também pode ajudar a garantir a participação regular das casamento e a gravidez. meninas nos programas (em relação à necessidade de uma agenda mais ampla para tratar da questão de programas e emprego para os jovens no Brasil, ver a Caixa 7). RESUMO DAS INTERVENÇÕES DIRECIONADAS INCENTIVOS PARA MANTER AS Os três tipos de intervenções mencionados acima MENINAS NA ESCOLA não são exaustivos. Para melhorar a escolaridade das meninas, por exemplo, são necessárias intervenções O terceiro conjunto de programas tem por objetivo adicionais. Os três tipos de intervenções acima foram manter as meninas na escola e permitir que retornem selecionados porque suas avaliações tiveram como foco em casos de abandono, ou adiar o casamento. Segundo as mudanças em matéria de conhecimentos de SSR, a literatura, há várias opções de intervenção disponíveis casamento infantil e/ou gravidez precoce. Os vários para manter as meninas na escola e adiar o casamento programas e intervenções também não são mutuamente (Kalamar et al., 2016). Em alguns casos, existem exclusivos - eles podem se complementar. Embora também avaliações indicando que os programas que alguns programas funcionem melhor do que outros para oferecem incentivos à escolarização costumam ter adiar o casamento e a maternidade e aumentar o nível sucesso em manter as meninas na escola e, às vezes, de escolaridade das meninas, todas as três categorias de adiar o casamento e a gravidez. Alguns desses programas programas oferecem benefícios. Com seu foco em grupos possibilitam o retorno de meninas que abandonaram a diversos de meninas - por exemplo, as meninas que escola. estão na escola ou que têm potencial de voltar às aulas As transferências condicionadas de renda (TCRs) que e as que abandonaram os estudos e talvez não possam incentivam a escolaridade e promovem a saúde das retornar - todas as três categorias de programas devem meninas - e também apoiam as famílias em períodos de ser consideradas ao implementarem-se estratégias que choque - também podem ser utilizadas para incentivar visam melhorar as oportunidades para as adolescentes. requisitos de desempenho. Essas transferências Outro exemplo refere-se à necessidade de associar as costumam ser condicionadas à frequência escolar das transferências de renda a outras medidas para fortalecer a crianças ou a consultas médicas preventivas. Diversas autodeterminação - tais como o desenvolvimento de soft pesquisas indicam que as TCRs conseguem melhorar, skills e conhecimentos sobre nutrição e saúde reprodutiva - para garantir a eficácia (World Bank, 2012). ABRIL 2019 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | 19 CONCLUSÃO Para eliminar o casamento infantil e a maternidade precoce e aumentar o nível de escolaridade das meninas, algumas condições básicas devem ser cumpridas. As leis devem estipular 18 anos como a idade mínima legal para o casamento de meninas e meninos, sem exceções. Isso inclui a eliminação de brechas que permitam o casamento infantil com o consentimento dos pais, autorização judicial ou em outras circunstâncias. A legislação deve ser firme e incluir sanções para as pessoas envolvidas conscientemente em tais casamentos. Mas isso não é suficiente. No Brasil e em outros países, as meninas ainda se casam antes da idade mínima legal para o casamento. Para manter as meninas no Ensino Médio, é preciso construir escolas mais próximas de onde as crianças (meninos e meninas) moram ou, como alternativa, fornecer meios adequados de transporte até a escola. Também é importante fornecer instalações sanitárias e de higiene separadas para as meninas e reduzir o risco de violência e assédio sexual na escola ou no caminho para a escola. As escolas devem ser acessíveis para os pobres, considerando-se tanto os custos financeiros para os pais quanto os custos de oportunidade da educação. As meninas, assim como os meninos, precisam aprender na escola; caso contrário, os benefícios da frequência escolar podem não se materializar e as famílias podem optar por não fazer os sacrifícios necessários para manter as meninas na escola. Além disso, com base em uma revisão bibliográfica recente de programas para melhorar os resultados de saúde sexual e reprodutiva das jovens, adiar o casamento e a maternidade e aumentar a participação escolar das meninas, Botea et al. (2017) recomendam uma abordagem em três frentes. • Programas que proporcionam habilidades para a vida e conhecimentos de saúde reprodutiva: essas intervenções costumam fazer uso de programas com espaços seguros para empoderar as meninas, oferecendo capacitação em habilidades para a vida e conhecimentos mais aprofundados sobre saúde sexual e reprodutiva, além de outras habilidades. Esses programas geraram benefícios importantes para as meninas - além dos conhecimentos adquiridos, houve também ganhos de autoestima e confiança, entre outros. No entanto, na ausência de oportunidades adicionais de subsistência ou incentivos à escolaridade, não está claro se os espaços seguros, por si só, são suficientes para adiar o casamento e a maternidade. • Programas para ampliar as oportunidades econômicas: Intervenções com ênfase no empoderamento das meninas, muitas vezes em espaços seguros, e que visam proporcionar oportunidades de subsistência tiveram algum sucesso em aumentar a renda, emprego e/ou a poupança de quem participou. Em alguns casos, também podem melhorar os resultados de saúde reprodutiva e adiar o casamento ou a gravidez, mas não de forma sistemática. • Programas para manter as meninas na escola ou adiar o casamento: Intervenções que promovem a educação, especialmente ao reduzir o custo financeiro e de oportunidade do ensino, estão entre as medidas com maior probabilidade de ajudar a postergar o casamento e a gravidez. Alguns desses programas também possibilitam o retorno à sala de aula de meninas que abandonaram a escola. Programas que oferecem incentivos financeiros diretos para as meninas ou famílias adiarem o casamento também podem funcionar. • Consequências para as políticas: Embora alguns programas funcionem melhor do que outros para adiar o casamento e a maternidade e aumentar o nível de escolaridade das meninas, todas as três categorias de programas oferecem benefícios. Com seu foco em grupos diversos de meninas - por exemplo, as meninas que estão na escola ou que têm potencial de voltar às aulas e as que abandonaram os estudos e talvez não possam retornar - todas as três categorias de programas devem ser consideradas ao implementar estratégias que visam melhorar as oportunidades para as adolescentes. 20 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | ABRIL 2019 REFERÊNCIAS Abramsky, T., K. Devries, L. Kiss, J. Nakuti, N. Kyegombe, E. Starmann, B. Cundill, L. Francisco, D. Kaye, T. Musuya, L. Michau, and C. Watts. 2014. Findings from the SASA! Study: A Cluster Randomized Controlled Trial to Assess the Impact of a Community Mobilization Intervention to Prevent Violence against Women and Reduce HIV Risk in Kampala, Uganda, BMC Medicine 12:122. Acemoglu, D. 2010. Theory, General Equilibrium and Political Economy. NBER Working Paper No. 15944. Boston, MA: National Bureau of Economic Research. Acemoglu, D., D. H. Autor, and D. Lyle. 2004. Women, War, and Wages: The Effect of Female Labor Supply on the Wage Structure at Midcentury, Journal of Political Economy 112(3): 497-551. Almeida, M. C. C., and E. M. L. Aquino. 2011. Adolescent pregnancy and completion of basic education: a study of young people in three state capital cities in Brazil. Cadernos de saude publica, 27(12): 2386-2400. Angrist, J. D. 1995. The Economic Returns to Schooling in the West Bank and Gaza, American Economic Review, 85(5): 1065-87. Bakilana, A., C. Moucheraud, C. McConnell, and R. Hasan. 2016. Early Childhood Development: Situation Analysis for Malawi. Country Policy Brief, Washington, DC: The World Bank. Bandiera, O.; N. Buehren, R. Burgess, M. Goldstein, S. Gulesci, I. Rasul, and M. Sulaiman. 2014. Empowering Adolescent Girls: Evidence from a Randomized Control Trial in Uganda. Mimeo. Washington, D.C.: The World Bank. Bashir, S., M. Lockheed, E. Ninan, and J. P. Tan, 2018. Facing Forward: Schooling for Learning in Africa. Washington, DC: The World Bank. Black, M. M., S. P. Walker, L. C. H. Fernald, C. T. Andersen, A. M. DiGirolamo, C. Lu, D. C. McCoy, G. Fink, Y. R. Shawar, J. Shiffman, A. E. Devercelli, Q. T. Wodon, E. Vargas-Baron, and S. Grantham-McGregor. 2016, Early Childhood Development Coming of Age: Science through the Life Course, The Lancet, 389 (10064): 77-90. Botea, I., S. Chakravarty, and S. Haddock, and Q. Wodon. 2017. Interventions Improving Sexual and Reproductive Health Outcomes and Delaying Child Marriage and Childbearing for Adolescent Girls, Ending Child Marriage Notes Series. Washington, DC: The World Bank. Buehren, N. 2015. The Cost of the Gender Gap in Agricultural Productivity in Malawi, Tanzania, and Uganda. Mimeo. Washington, D.C.: The World Bank Canning, D., S. Raja, and A. S. Yazbeck. 2015. Africa’s Demographic Transition Dividend or Disaster?, Washington, DC: The World Bank. Cruz, M. S., F. J. V. Carvalho, and G. Irffi. 2016. Socioeconomic, Demographic, Cultural, Regional and Behavioral Profile in Adolescent Pregnancy in Brazil, Planejamento e Políticas Públicas, N. 46. Duflo, E. 2004. The Medium Run Effects of Educational Expansion: Evidence from a Large School Construction Program in Indonesia, Journal of Development Economics, 74(1): 163-97. Field, E. and A. Ambrus. 2008. Early Marriage, Age of Menarche, and Female Schooling Attainment in Bangladesh. Journal of Political Economy 116(5): 881-930. Glynn, J. R., B. S. Sunny, B. DeStavola, A. Dube, M. Chihana, A. J. Price, and A. C. Crampin, 2018. Early School Failure Predicts Teenage Pregnancy and Marriage: A Large Population-based Cohort Study in Northern Malawi, PLoS One, E 13(5): e0196041. Greene, M. E., S. Perlson, A. Taylor, and G. Lauro. 2015. Engaging Men and Boys to Address the Practice of Child Marriage. Washington, DC: GreeneWorks. Hasan, R., C. Moucheraud, and A. Bakilana. 2016. Beginning a Family and Adopting a Healthy Lifestyle: Situation Analysis for Malawi. Country Policy Brief, Washington, DC: The World Bank. Hoddinott, J., J. R. Behrman, J. A. Maluccio, P. Melgar, A. R. Quisumbing, M. Ramirez-Zea, A. D. Stein, K. M. Yount, and R. Martorell. 2013. Adult Consequences of Growth Failure in Early Childhood, American Journal of Clinical Nutrition 98(5): 1170-8. Horton S., and R. Steckel. 2013. Global economic losses attributable to malnutrition 1900-2000 and projections to 2050, in B. Lomborg, editor, The Economics of Human Challenges, Cambridge, U.K.: Cambridge University Press. ABRIL 2019 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | 21 Instituto Unibanco. 2016. Quem são os jovens fora da escola. Aprendizagem em foco. Boletim Nº. 5. Khan, A., and M. Mupuwaliywa. 2016. Providing Out-of-School Adolescent Girls with Skills: Situation Analysis for Malawi. Country Policy Brief, Washington, DC: The World Bank. Kalamar, A. M., S. Lee-Rife, and M. J. Hindin. 2016. Interventions to Prevent Child Marriage among Young People in Low- and Middle- Income Countries: A Systematic Review of the Published and Gray Literature, Journal of Adolescent Health, 59: S16-S21. Klugman, J., L. Hanmer, S. Twigg, T. Hasan, and J. McCleary-Sills. 2014. Voice and Agency: Empowering Women and Girls for Shared Prosperity. Washington, DC: The World Bank. Koski, A., E. C. Strumpf, J. S. Kaufman, J. Frank, J. Heymann, and A. Nandi. 2018. The impact of eliminating primary school tuition fees on child marriage in sub-Saharan Africa: A quasi-experimental evaluation of policy changes in 8 countries, PLoS One 13(5): e0197928. Lange, G. M., Q. Wodon, and K. Carey. 2018. The Changing Wealth of Nations 2018: Sustainability into the 21st Century. Washington: The World Bank. Male, C., and Q. Wodon. 2018. Trends in Child marriage and Educational Attainment for Girls in Brazil. Mimeo, Education Global Practice. Washington, DC: The World Bank. Maswikwa, B., L. Richter, J. Kaufman, and A. Nandi. 2015. Minimum Marriage Age Laws and the Prevalence of Child Marriage and Adolescent Birth: Evidence from Sub-Saharan Africa. International Perspectives on Sexual and Reproductive Health 41(2): 58-68. McConnell, C., and M. Mupuwaliywa. 2016. Keeping Girls in School: Situation Analysis for Malawi. Country Policy Brief, Washington, DC: The World Bank. Narita, R., and M. D. Montoya Diaz. 2016. Teenage Motherhood, Education, and Labor Market Outcomes of the Mother: Evidence from Brazilian data, EconomiA 17(2): 238-52. Nguyen, M. C., and Q. Wodon. 2014. Impact of Child Marriage on Literacy and Educational Attainment in Africa, Background Paper for Fixing the Broken Promise of Education for All. Paris and New York: UNESCO Institute of Statistics and UNICEF. Nove, A., Z. Matthews, S. Neal, and A. V. Camacho. 2014. Maternal mortality in adolescents compared with women of other ages: evidence from 144 countries, The Lancet Global Health 2(3): 155-64. Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights. 2014. Preventing and eliminating child, early and forced marriage. Report of the Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights, Human Rights Council Twenty-sixth session, Geneva. Onagoruwa, A., and Q. Wodon. 2018. Measuring the Impact of Child Marriage on Total Fertility: A Study for Fifteen Countries, Journal of Biosocial Science, 50(5): 626-39. Psacharopoulos. G., and H. A. Patrinos. 2018. Returns to Investment in Education: A Decennial Review of the Global Literature, Education Economics. forthcoming. Robertson, S., E. Cassity, and E. Kunkwenzu. 2017. Girls’ Primary and Secondary Education in Malawi: Sector Review, Final Report Submitted to the Ministry of Education Science and Technology (MoEST) with support from UNICEF, Camberwell: Australian Council for Educational Research. Savadogo, A. and Q. Wodon. 2018a. Impact of Child Marriage on Women’s Earnings across Multiple Countries. Education Global Practice. Washington, DC: The World Bank. Savadogo, A., and Q. Wodon. 2018b. To What Extent Could Ending Child Marriage Reduce Intimate Partner Violence in sub-Saharan Africa? Education Global Practice. Washington, DC: The World Bank. Silva, E. R. Andrade da and R. U. Botelho, Editors. 2016 Dimensões da experiência juvenil brasileira e novos desafios às políticas públicas. Brasília: Ipea. Simões, A. A. 2016. As metas de universalização da Educação Básica no Plano Nacional de Educação: o desafio do acesso e a evasão dos jovens de famílias de baixa renda no Brasil, PNE em Movimento 4, INEP. Taylor, A.Y., G. Lauro, M. Segundo, and M. E. Greene. 2015. She Goes with Me in My Boat: Child and Adolescent Marriage in Brazil, Results from Mixed-Methods Research. Rio de Janeiro and Washington DC: Instituto Promundo & Promundo-US. UNESCO. 2017. Reducing Global Poverty through Universal Primary and Secondary Education, Policy Paper 32/Fact Sheet 44. Paris: UNESCO. 22 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | ABRIL 2019 Unterhalter, E., A. North, M. Arnot, C. Lloyd, L. Moletsane, E. Murphy-Graham, J. Parkes, and M. Saito. 2014. Girls’ Education and Gender Equality. London: Department for International Development. Wils, A. 2015. Reaching education targets in low and lower-middle income countries: Costs and finance gaps to 2030, Background paper prepared for the UNESCO Education for All Global Monitoring Report, Paris: UNESCO. Wodon, Q. 2018a. Estimating the Economic Impacts and Costs of Child Marriage Globally: Methodology and Estimates. Education Global Practice. Washington, DC: The World Bank. Wodon, Q. 2018b. Education Budget Savings from Ending Child Marriage and Early Childbirths: The Case of Niger, Applied Economics Letters, 25(10): 649–52. Wodon, Q., C. Male, A. Nayihouba, A. Onagoruwa, A. Savadogo, A. Yedan, J. Edmeades, A. Kes, N. John, L. Murithi, M. Steinhaus, and S. Petroni. 2017. Economic Impacts of Child Marriage: Global Synthesis Report, Washington, DC: The World Bank and ICRW. Wodon, Q., C. Male, and A. Onagoruwa. Forthcoming. A Simple Approach to Measuring the Share of Early Childbirths Likely Due to Child Marriage in Developing Countries, Forum for Social Economics. Wodon, Q., C. Montenegro, H. Nguyen, and A. Onagoruwa. 2018. Missed Opportunities: The High Cost of Not Educating Girls. The Cost of Not Educating Girls Notes Series, Washington, DC: The World Bank. Wodon, Q., C. Nguyen and C. Tsimpo. 2016. Child Marriage, Education, and Agency in Uganda, Feminist Economist, 22(1): 54-79. Wodon, Q., P. Tavares, O. Fiala, A. Le Nestour, and L. Wise. 2017. Child Marriage Laws and their Limitations. Ending Child Marriage Notes Series. London and Washington, D.C.: Save the Children and The World Bank. Wodon, Q., and B. de la Brière. 2018, Unrealized Potential: The High Cost of Gender Inequality in Earnings. The Cost of Gender Inequality Notes Series. Washington, DC: The World Bank. World Bank. 2001. Engendering Development through Gender Equality in Rights, Resources, and Voice, Washington, DC: The World Bank. World Bank. 2012. World Development Report 2012: Gender Equality and Development. Washington, DC: The World Bank. World Bank. 2015. Global Monitoring Report 2015/16: Development Goals in an Era of Demographic Change, Washington, DC: The World Bank. World Bank. 2018. World Development Report 2018: Learning to Realize Education’s Promise. Washington, DC: The World Bank. Citação recomendada para esta nota: Wodon, Q., P. Tavares, C. Male, and A. Loureiro. 2018. Child Marriage, Girls’ Education and the Law in Brazil. Ending Child Marriage Notes Series. Washington, DC: The World Bank. Esta nota foi elaborada pela equipe do Banco Mundial. Esta nota e o programa de trabalho mais amplo do qual ela faz parte no âmbito do Banco Mundial recebeu apoio da Fundação do Fundo de Investimento Infantil e da Parceria Global pela Educação. Os autores são gratos pelos comentários de Tazeen Hasan, entre outros. Os resultados, interpretações e conclusões expressos nesta nota são inteiramente do(s) autor(es) e não devem ser atribuídos de qualquer maneira ao Banco Mundial, às suas organizações afiliadas, aos membros de sua Diretoria Executiva ou aos países que representam. O Banco Mundial não garante a exatidão dos dados incluídos neste trabalho. As informações e ilustrações nesta nota podem ser livremente reproduzidas, publicadas ou usadas para fins não comerciais sem a permissão do Banco Mundial. No entanto, o Banco Mundial exige que o estudo original seja citado como fonte. © 2017 Banco Mundial, Washington, DC 20433. ABRIL 2019 | ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA | 23 ERRADICANDO O CASAMENTO INFANTIL CASAMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: A EDUCAÇÃO DAS MENINAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA